A desigualdade legislada: o critério do nascimento e o ataque à diáspora
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A desigualdade legislada: o critério do nascimento e o ataque à diáspora
A Constituição Italiana começa com uma promessa: todos os cidadãos são iguais perante a lei
O artigo 3, em sua simplicidade solene, consagra o princípio da igualdade como fundamento da República.
Mas uma lei que distingue italianos com base no lugar de nascimento ou na história familiar rompe essa promessa e fere o próprio sentido de pertencimento nacional.
A Lei 74/2025, ao introduzir limites territoriais e critérios de residência para o reconhecimento da cidadania iure sanguinis, produziu uma desigualdade inédita na ordem jurídica italiana.
Pela primeira vez, o legislador criou uma diferença entre italianos "de dentro" e italianos "de fora", transformando a cidadania — que sempre foi um elo de continuidade entre gerações — em um privilégio restrito aos nascidos sob determinadas condições.
A lógica perversa do lugar de nascimento
O novo critério imposto pela Lei 74/2025 estabelece que a cidadania não será reconhecida quando o ascendente italiano nasceu no exterior e não residiu na Itália por pelo menos dois anos antes do nascimento do descendente.
Na prática, essa regra fragmenta famílias inteiras: irmãos com o mesmo ascendente podem ser tratados de forma diferente apenas porque nasceram em gerações distintas ou sob legislações diferentes.
Esse dispositivo cria uma distinção inaceitável entre cidadãos com base em um elemento absolutamente acidental — o lugar do nascimento do antepassado — e ignora a essência do ius sanguinis: o vínculo de sangue, que independe do território.
O resultado é uma discriminação de natureza geográfica e genealógica.
Geográfica, porque privilegia quem nasceu dentro das fronteiras italianas; genealógica, porque penaliza descendentes de italianos que emigraram há mais tempo, como as famílias da América do Sul.
Em ambos os casos, o efeito é o mesmo: negar cidadania a quem é italiano por origem, mas nasceu longe da península.
O ataque silencioso à diáspora italiana
A Itália é um dos poucos países do mundo cuja identidade nacional se estende muito além de seu território.
Há mais italianos fora da Itália do que dentro dela — e isso é parte da própria história da República.
A diáspora não é um acidente da emigração, mas um capítulo essencial da construção da nação.
A Constituição de 1948 reconheceu isso ao prever, no artigo 9, que a República promove o desenvolvimento da cultura italiana "também fora do território nacional".
Ao criar barreiras artificiais ao reconhecimento da cidadania iure sanguinis, o legislador trai esse princípio e rompe o pacto moral entre a Itália e seus filhos espalhados pelo mundo.
As famílias ítalo-brasileiras, ítalo-argentinas e ítalo-uruguaias não são estrangeiras ao espírito da República: são herdeiras diretas de uma identidade que a Constituição deveria proteger, não excluir.
Discriminação e violação do princípio da igualdade
O art. 3 da Constituição Italiana estabelece que "todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas, condições pessoais e sociais".
Esse preceito vale tanto para cidadãos residentes quanto para aqueles reconhecidos iure sanguinis.
Ao impor condições diferentes de reconhecimento com base no local de nascimento ou na linha genealógica, a Lei 74/2025 cria uma categoria de "cidadãos de segunda geração", incompatível com o espírito constitucional.
O mesmo sangue, o mesmo sobrenome, a mesma origem — mas direitos diferentes.
Nenhuma república pode sustentar uma distinção tão arbitrária sem ferir sua própria legitimidade.
O vínculo entre o indivíduo e a nação não pode ser condicionado à geografia, mas à história.
A linha invisível entre igualdade formal e desigualdade concreta
O texto da Lei 74/2025 é hábil: fala em "ordem", "critérios objetivos", "residência comprovada".
Mas, na prática, transforma a igualdade formal em desigualdade concreta.
O Estado, que deveria garantir uniformidade na aplicação do direito, passa a diferenciar indivíduos por circunstâncias alheias à sua vontade.
A Corte Costituzionale já se pronunciou, em diversas decisões (n. 10/2015, n. 31/2019, n. 142/2025), que o princípio da igualdade não impede diferenciações, desde que sejam racionais e proporcionais.
A distinção criada pela Lei 74/2025, contudo, é irracional e desproporcional, pois penaliza exatamente quem manteve viva a cultura italiana fora do território.
Essa distorção fere o núcleo essencial do princípio de igualdade: a proibição da discriminação baseada em condições de nascimento.
O DDL 1450 e o novo teste de pertencimento
O DDL 1450, apresentado em abril de 2025, agrava esse cenário ao propor a perda da cidadania após 25 anos, caso o cidadão nascido fora da Itália não demonstre vínculos efetivos com a República.
Entre esses "vínculos", o texto cita a inscrição no AIRE, o voto e a manutenção de cadastros atualizados — critérios administrativos que nada dizem sobre pertencimento cultural ou identidade nacional.
A proposta cria um "teste de italianidade" que divide os cidadãos em dois grupos: os que vivem sob o olhar do Estado e os que estão fora do radar burocrático.
É o ápice da desigualdade legislada.
O Estado, em vez de reconhecer a pluralidade de seus cidadãos, passa a medir o pertencimento pela frequência com que cada um preenche um formulário.
Essa lógica burocrática substitui o vínculo histórico e afetivo por uma relação administrativa de controle.
A contradição com o art. 9 e a própria ideia de República
Ao marginalizar a diáspora, o Estado esquece que o artigo 9 da Constituição consagra a universalidade da cultura italiana.
A Itália é uma nação que transcende fronteiras, e sua cidadania, por definição, deve acompanhar essa universalidade.
O critério do nascimento territorial é incompatível com essa vocação histórica.
A cidadania iure sanguinis sempre foi o reconhecimento da continuidade do povo italiano no tempo, não no espaço.
Transformá-la em privilégio local é amputar a própria memória da nação.
O valor constitucional da diáspora
A Corte Costituzionale já reconheceu, em decisões paradigmáticas, o papel constitucional da diáspora italiana.
A Lei 74/2025 e o DDL 1450 caminham na direção oposta — como se o cidadão que vive fora da Itália fosse menos italiano, menos digno de direitos, menos merecedor da proteção da República.
Mas o pertencimento não se mede pela distância.
O italiano que nasceu em Buenos Aires, São Paulo ou Toronto não é menos italiano do que aquele que nasceu em Roma.
A Constituição não é um mapa geográfico, é um pacto de pertencimento.
Conclusão
A desigualdade introduzida pela Lei 74/2025 representa uma das maiores ameaças à coerência do sistema constitucional italiano.
Ao condicionar o direito à cidadania a fatores territoriais e genealógicos, o legislador rompe com o princípio da igualdade e nega a universalidade da República.
O sangue italiano não conhece fronteiras.
A tentativa de limitar sua transmissão é, no fundo, um ataque simbólico à própria história da Itália — a história de um povo que migrou, resistiu e construiu pontes com o mundo.
A Constituição de 1948 não foi escrita para dividir italianos, mas para reconhecê-los.
E enquanto esse princípio sobreviver, a Itália continuará sendo uma nação una, onde quer que seus filhos estejam.
Por Mariane Baroni
Advogada especializada em Direito Internacional e Constitucional
Diretora Jurídica da Master Cidadania
Autora da série "Você sabe exatamente o que está sendo discutido?", dedicada a traduzir o debate constitucional italiano em linguagem acessível, sem perder o rigor técnico.
A série integra o projeto "A Constituição e a Cidadania", que resultará no e-book homônimo a ser lançado após o julgamento da Corte Costituzionale Italiana.
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