Certeza do direito e o caos da linha de corte
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Certeza do direito e o caos da linha de corte
Certeza do direito e o caos da linha de corte
Toda democracia se sustenta sobre uma base silenciosa: a confiança do cidadão no direito.
Essa confiança tem nome jurídico — certeza do direito — e é o que permite que cada pessoa aja com previsibilidade e segurança, sabendo que a lei não mudará o passado nem trairá as regras do jogo.
Quando o legislador altera as condições de um direito sem transição, ele rompe esse pacto.
Foi exatamente isso que a Lei 74/2025 fez ao modificar o sistema de cidadania italiana sem qualquer regra de continuidade.
O resultado é o que os juristas chamam de "caos da linha de corte" — o momento em que a lei nova ignora a realidade existente e cria um abismo entre o antes e o depois.
O princípio da segurança jurídica
O artigo 3 da Constituição Italiana, além de consagrar a igualdade, sustenta implicitamente o princípio da segurança jurídica.
Ninguém pode ser tratado de forma desigual em função de um evento que escapou ao seu controle, como a data de entrada de um protocolo, o tempo de espera do tribunal ou o andamento administrativo de um Comune.
Esse princípio é o que impede que o Estado transforme o cidadão em refém da burocracia.
A certeza do direito é uma garantia de que o passado jurídico será respeitado e que as expectativas legítimas não serão destruídas por mudanças súbitas.
No caso da cidadania italiana, a ausência de regras de transição criou um cenário de insegurança estrutural, em que dois indivíduos com o mesmo direito são tratados de forma oposta apenas por uma questão de tempo.
O caos da linha de corte
A chamada "linha de corte" — o momento a partir do qual a nova lei passa a valer — é um instrumento de transição jurídica.
Serve para assegurar que quem iniciou um processo sob uma regra antiga não será prejudicado pela nova.
Quando essa linha é mal traçada, o direito deixa de ser seguro.
A Lei 74/2025 foi promulgada sem qualquer disposição que disciplinasse os processos em andamento.
Ela entrou em vigor alterando critérios de reconhecimento e de transmissão da cidadania, mas sem esclarecer o que acontece com as ações já propostas, os pedidos administrativos pendentes ou as situações em fase de transcrição.
O resultado é que milhares de processos ficaram suspensos ou sujeitos a interpretações contraditórias.
Juízes, procuradorias e consulados passaram a decidir de formas divergentes, produzindo o que na prática é uma anarquia jurídica institucionalizada.
A falha legislativa e o dever de previsibilidade
Toda lei que altera direitos fundamentais deve prever uma transição razoável.
É o que determina o artigo 97 da Constituição Italiana, que exige legalidade, imparcialidade e eficiência da administração pública.
A ausência de normas transitórias viola esse artigo, porque torna impossível uma aplicação uniforme da lei.
O legislador tem o dever de prever como a norma se aplica ao que já existe.
Não é um detalhe técnico, é uma obrigação constitucional.
Sem isso, o direito se torna imprevisível — e o cidadão perde confiança no Estado.
No caso da cidadania italiana, a falta de transição produziu efeitos absurdos:
- Famílias com processos idênticos tiveram desfechos opostos.
- Protocolos feitos um dia antes e um dia depois da vigência da lei receberam interpretações incompatíveis.
- Tribunais e consulados divergem sobre a aplicação do novo texto.
Essa é a antítese da certeza jurídica.
Violação da expectativa legítima
O princípio da expectativa legítima é reconhecido pela jurisprudência constitucional italiana e europeia como parte do Estado de Direito.
Quando uma lei cria uma expectativa e o cidadão age com base nela, o Estado tem o dever de respeitar essa confiança.
A mudança abrupta de regras sem aviso prévio ou transição é considerada, em muitos casos, um abuso legislativo.
Quem ingressou com um processo de cidadania antes da Lei 74/2025 o fez amparado por um quadro jurídico estável.
Alterar as condições de reconhecimento depois do protocolo é violar uma expectativa legítima.
E, no campo do direito civil e constitucional, essa violação tem nome: inconstitucionalidade material.
O descompasso entre tempo jurídico e tempo administrativo
O caos atual também é fruto de um fenômeno estrutural: a lentidão da administração pública italiana.
Os processos de cidadania levam anos para serem concluídos.
Nesse intervalo, o Estado alterou as regras, punindo quem já havia iniciado o procedimento com base em uma lei anterior.
É uma contradição evidente: o cidadão cumpre seu dever, mas o Estado muda as condições antes de decidir.
A Corte Costituzionale já reconheceu, em precedentes como a sentença n. 31/2019, que o tempo da administração não pode prejudicar o exercício de um direito.
Aplicar retroativamente a nova lei aos processos pendentes é transferir ao cidadão a culpa pela ineficiência estatal.
Os efeitos práticos da desordem
A ausência de transição produziu um colapso em cadeia:
1. Nos tribunais, juízes divergem sobre o alcance temporal da lei.
2. Nos consulados, há processos paralisados por "análise de compatibilidade".
3. Nos Comuni, a transcrição de sentenças passou a ser condicionada a novas exigências.
A insegurança jurídica não é teórica, é real.
Famílias que dedicaram anos a reunir documentos agora se veem diante de uma incerteza absoluta: não sabem se o direito ainda existe, se será reconhecido ou se terão de recomeçar do zero.
Isso gera não apenas frustração, mas descrédito nas instituições.
E um Estado que perde credibilidade perde autoridade moral.
A previsibilidade como pilar da confiança pública
A previsibilidade das leis é o que diferencia um Estado de Direito de um Estado arbitrário.
Quando o cidadão não sabe se uma regra valerá amanhã, o direito deixa de cumprir sua função civilizadora.
O que está em jogo, no caso da cidadania italiana, vai além do reconhecimento de um status.
É a própria credibilidade da República.
Um sistema jurídico que muda sem transição não é apenas falho — é injusto.
O princípio da certeza do direito exige coerência entre norma e tempo.
E a coerência é o que legitima a autoridade do Estado perante seus cidadãos.
A necessidade de uma resposta constitucional
Cabe à Corte Costituzionale restabelecer a coerência do sistema.
O Tribunal não pode corrigir a lentidão do legislador, mas pode declarar que os efeitos da nova lei não atingem situações já iniciadas.
Essa decisão é fundamental para restaurar a confiança pública e impedir que a República se torne refém de seus próprios erros.
A Corte já tem jurisprudência consolidada no tema: o respeito à confiança legítima e à segurança jurídica é parte do núcleo essencial do Estado de Direito.
Ao reafirmar isso, o Tribunal não estará apenas corrigindo uma lei defeituosa, mas preservando o próprio sentido da Constituição de 1948.
Conclusão
A cidadania italiana não pode depender da sorte do protocolo.
Direitos fundamentais não podem ser definidos por um calendário.
A Lei 74/2025 criou um abismo jurídico entre quem agiu sob uma regra e quem foi surpreendido pela seguinte.
Esse abismo destrói a previsibilidade, mina a confiança e ofende a coerência do ordenamento.
A certeza do direito é o mínimo que o cidadão espera da República.
Sem ela, não há justiça, apenas burocracia.
E enquanto o Parlamento hesita, cabe à Corte Costituzionale lembrar ao Estado que o tempo da lei não pode ser usado contra o cidadão.
Por Mariane Baroni
Advogada especializada em Direito Internacional e Constitucional
Diretora Jurídica da Master Cidadania
Autora da série "Você sabe exatamente o que está sendo discutido?", dedicada a traduzir o debate constitucional italiano em linguagem acessível, sem perder o rigor técnico.
A série integra o projeto "A Constituição e a Cidadania", que resultará no e-book homônimo a ser lançado após o julgamento da Corte Costituzionale Italiana.
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