Cidadania Italiana Via Judicial em 2025: a superação da tese da falsa materna e a segurança da via judicial
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Cidadania Italiana Via Judicial em 2025: a superação da tese da falsa materna e a segurança da via judicial
Por Dra. Mariane Baroni da Master Cidadania – Advogada formada pela PUC-SP, com pós graduação em Direito Internacional pela UCL (University College London).
“A falsa materna foi superada pelos tribunais italianos. Entenda por que a via judicial é o caminho seguro para cidadania italiana em 2025.”
Introdução
O reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis é um dos temas mais debatidos no direito italiano contemporâneo. Trata-se de um modelo único, em que a cidadania se transmite de geração em geração pelo vínculo sanguíneo, sem limite de gerações, desde que seja possível comprovar documentalmente a linha ininterrupta. Essa peculiaridade faz com que milhões de descendentes espalhados pelo mundo tenham direito ao reconhecimento da cidadania italiana, criando uma verdadeira rede global de ítalo-descendentes.
Entretanto, a aplicação prática desse modelo sempre foi marcada por controvérsias jurídicas. Entre elas, a mais sensível diz respeito à transmissão da cidadania pela linha materna. Durante décadas, a legislação italiana impôs às mulheres severas restrições quanto à possibilidade de transmitir o status civitatis aos filhos. Essa discriminação de gênero, profundamente enraizada na ordem jurídica, gerou consequências que ainda hoje repercutem nos processos de reconhecimento de cidadania.
A exclusão da mãe italiana como transmissora do vínculo de cidadania só começou a ser questionada após a entrada em vigor da Constituição republicana de 1948, que introduziu o princípio da igualdade formal e material entre homens e mulheres. Contudo, mesmo após a Constituição, a legislação ordinária continuou reproduzindo as restrições anteriores. Somente a partir da atuação da Corte Costituzionale e da Corte di Cassazione, em especial na decisão das Sezioni Unite de 2009, consolidou-se o entendimento de que a discriminação contra a mulher era inconstitucional e deveria ser afastada retroativamente.
Nesse contexto, surgiu a chamada tese da “falsa materna”, utilizada por alguns consulados e tribunais para restringir novamente a via materna. Essa construção sustenta que, nos casos em que a mãe italiana se casou com um homem também italiano, não seria possível invocar a tese da inconstitucionalidade, porque a mulher nunca teria perdido a cidadania. O resultado é a tentativa de desqualificar a mãe como dante causa, colocando em risco milhares de processos legítimos.
O objetivo deste artigo é apresentar uma análise jurídica abrangente sobre o tema, dividida em cinco pontos fundamentais: a evolução legislativa que instituiu a discriminação; a declaração de inconstitucionalidade e sua eficácia retroativa; a origem e os fundamentos do mito da falsa materna; as razões jurídicas pelas quais esse mito não se sustenta; e, por fim, a vitória judicial que consolidou a superação dessa tese.
A evolução legislativa da cidadania italiana
A Lei n. 555 de 1912
A Lei n. 555, de 13 de junho de 1912, representou a primeira tentativa sistemática de codificar a cidadania italiana em um texto legislativo unitário. Seu artigo 1º dispunha que “é cidadão por nascimento o filho de pai cidadão”. A mãe cidadã italiana, por sua vez, só poderia transmitir a cidadania em situações residuais, como no caso de filho ilegítimo ou de pai desconhecido.
Na prática, isso significava que o critério da transmissão da cidadania era exclusivamente patriarcal. A mulher italiana era juridicamente invisível para fins de transmissão da nacionalidade. Mesmo quando era italiana de origem, seus filhos não eram reconhecidos como cidadãos se o pai fosse estrangeiro. Essa assimetria revelava o forte componente discriminatório da legislação, alinhado ao contexto histórico de início do século XX, quando a mulher era vista como dependente jurídica do marido.
A Lei de 1912 ainda previa, em seu artigo 10, que a mulher italiana casada com estrangeiro perdia automaticamente a cidadania italiana, passando a assumir a nacionalidade do marido. O efeito era devastador: além de não poder transmitir a cidadania, a mulher ainda corria o risco de perder a própria, tornando-se estrangeira em seu próprio país.
Esse quadro perdurou por décadas e produziu uma vasta geração de descendentes privados do reconhecimento da cidadania italiana pela simples razão de terem uma mulher como dante causa.
A Constituição italiana de 1948 e a ruptura normativa
A Constituição da República Italiana, promulgada em 1º de janeiro de 1948, representou uma ruptura profunda em relação ao modelo anterior. Seus artigos 3 e 29 consagraram o princípio da igualdade formal e material entre homens e mulheres, garantindo a ambos a mesma dignidade social e a paridade de direitos e deveres dentro da família.
A partir da nova ordem constitucional, tornou-se impossível sustentar juridicamente a exclusão das mulheres como transmissoras da cidadania. Ainda assim, o legislador ordinário não promoveu uma revisão imediata da legislação de 1912. O resultado foi um descompasso entre a Constituição, que proibia qualquer discriminação, e a lei ordinária, que continuava a reproduzir a lógica patriarcal.
Foi apenas com a atuação da Corte Costituzionale, na Sentença n. 87 de 1975, que se iniciou o processo de adequação normativa. Essa decisão reconheceu que a regra que previa a perda automática da cidadania pela mulher casada com estrangeiro era incompatível com a Constituição. Contudo, a Corte não enfrentou diretamente o problema da transmissão da cidadania aos filhos. Essa omissão manteve vivo o conflito jurídico por mais de três décadas.
A Lei n. 91 de 1992 e a reprodução da discriminação
A Lei n. 91, de 5 de fevereiro de 1992, promulgada para atualizar o sistema de cidadania italiana, poderia ter representado a solução definitiva. No entanto, seu artigo 1º repetiu a mesma lógica da lei anterior, prevendo que é cidadão por nascimento “o filho de pai ou de mãe cidadã”.
À primeira vista, poderia parecer que a nova lei corrigiu a desigualdade. No entanto, a redação foi interpretada de forma restritiva: apenas os filhos nascidos após a entrada em vigor da Constituição de 1948 seriam beneficiados. Para os nascidos antes de 1948, a exclusão permanecia, consolidando a discriminação contra milhares de descendentes.
A Lei de 1992, portanto, não resolveu o problema, mas o reforçou. A contradição entre a Constituição e a legislação ordinária ficou ainda mais evidente, e a solução definitiva teria de vir do Poder Judiciário.
A jurisprudência constitucional e a virada da Cassazione
A intervenção da Corte Costituzionale
A Constituição de 1948 inaugurou um novo paradigma no ordenamento jurídico italiano. Os artigos 3 e 29 estabeleceram os princípios de igualdade e de paridade entre os cônjuges, com efeitos diretos sobre todas as normas anteriores que estabeleciam discriminações de gênero. Era inevitável que a Corte Costituzionale fosse chamada a se pronunciar sobre a compatibilidade da Lei n. 555 de 1912 com a nova ordem constitucional.
O primeiro passo ocorreu com a Sentença n. 87 de 1975. Nessa decisão, a Corte declarou a inconstitucionalidade parcial do artigo 10 da Lei de 1912, que determinava a perda automática da cidadania italiana pela mulher casada com estrangeiro. A Corte reconheceu que essa regra violava frontalmente os princípios constitucionais de igualdade e de paridade entre os cônjuges. O efeito imediato foi restituir às mulheres italianas o direito de manter a própria cidadania, independentemente da nacionalidade do marido.
No entanto, a decisão não enfrentou o problema mais amplo: a incapacidade da mulher de transmitir a cidadania aos filhos nascidos antes de 1948. Essa lacuna manteve a exclusão em vigor, gerando insegurança jurídica e prolongando a discriminação.
A Corte voltou a se manifestar em outras ocasiões, como na Sentença n. 30 de 1983 e na Sentença n. 176 de 1989, reafirmando a incompatibilidade de dispositivos da Lei de 1912 com a Constituição. Embora esses julgados tenham reforçado o princípio da igualdade, não houve uma declaração abrangente sobre a transmissão da cidadania pela linha materna. A hesitação em enfrentar diretamente o tema criou um espaço de incerteza que só seria resolvido décadas depois.
A resistência administrativa e consular
Enquanto a jurisprudência constitucional avançava lentamente, a prática administrativa dos consulados italianos no exterior mantinha-se ancorada na interpretação restritiva da Lei de 1912. Os descendentes de mulheres italianas continuavam a ter seus pedidos indeferidos quando o nascimento ocorrera antes de 1948.
O argumento utilizado era simples: antes da Constituição de 1948, não existia a possibilidade legal de transmissão da cidadania pela linha materna. Logo, apenas uma intervenção expressa do legislador poderia reconhecer esse direito. Os consulados sustentavam que a competência para alterar o regime jurídico não era administrativa, mas legislativa.
Essa postura levou milhares de descendentes a recorrerem ao Poder Judiciário italiano, inaugurando a fase dos processos judiciais de reconhecimento de cidadania pela via materna.
A virada de 2009: Cassazione a Sezioni Unite n. 4466
O ponto de inflexão ocorreu em 25 de fevereiro de 2009, quando a Corte di Cassazione, reunida em Sezioni Unite, proferiu a histórica Sentença n. 4466. Esse julgamento consolidou a tese da inconstitucionalidade da exclusão da mulher italiana como transmissora da cidadania e fixou parâmetros claros para a aplicação retroativa do princípio da igualdade.
A Corte foi categórica ao afirmar que a discriminação de gênero prevista na Lei n. 555 de 1912 e reproduzida na Lei n. 91 de 1992 era incompatível com a Constituição de 1948. Mais do que isso, reconheceu que essa incompatibilidade produzia efeitos retroativos, de modo que a cidadania transmitida pela mãe italiana deveria ser considerada válida desde sempre.
Na fundamentação, as Sezioni Unite destacaram que a cidadania italiana é um status originário, que se transmite no momento do nascimento. Se um dos genitores era cidadão italiano, o filho nasce cidadão iure sanguinis. A lei ordinária que excluiu a mãe dessa possibilidade foi declarada inconstitucional, e por isso não pode produzir efeitos, nem mesmo em relação a fatos passados.
Essa decisão encerrou décadas de incerteza. A partir dela, consolidou-se a possibilidade de os descendentes de mulheres italianas nascidos antes de 1948 recorrerem ao Judiciário para obter o reconhecimento da cidadania. A via judicial da materna tornou-se não apenas viável, mas juridicamente segura, respaldada pela mais alta instância da jurisdição ordinária italiana.
A natureza retroativa da inconstitucionalidade
Um dos pontos centrais da decisão de 2009 foi a afirmação da retroatividade dos efeitos da inconstitucionalidade. A Corte explicou que a declaração de incompatibilidade com a Constituição não cria um novo direito, mas reconhece que o direito sempre existiu e foi indevidamente negado pela lei ordinária.
Isso significa que a mulher italiana sempre foi transmissora da cidadania em igualdade de condições com o pai. A lei de 1912 apenas criou uma barreira formal que, uma vez declarada inconstitucional, deve ser considerada inexistente desde a origem.
Essa compreensão é fundamental para afastar qualquer tentativa de relativizar a decisão. O direito à cidadania iure sanguinis pela linha materna não nasce em 2009, nem em 1948, mas no momento do nascimento do filho. A cidadania é status originário, imprescritível e irrevogável.
As repercussões práticas
Após a decisão de 2009, houve uma verdadeira explosão de processos judiciais de reconhecimento pela via materna. Tribunais em diversas regiões da Itália passaram a reconhecer o direito de descendentes de mulheres italianas nascidos antes de 1948, aplicando o precedente da Cassazione.
Esse movimento teve impacto não apenas jurídico, mas também social e econômico. Escritórios de advocacia e empresas de assessoria passaram a estruturar departamentos especializados em processos de materna, enquanto comunidades de descendentes no Brasil, na Argentina e em outros países multiplicaram os pedidos.
Ao mesmo tempo, surgiram resistências pontuais. Alguns tribunais tentaram relativizar a decisão, exigindo documentação adicional ou impondo interpretações restritivas. Foi nesse contexto que nasceu a tese da “falsa materna”, utilizada como subterfúgio para indeferir pedidos mesmo após a declaração de inconstitucionalidade.
Síntese
A jurisprudência constitucional e, sobretudo, a decisão da Cassazione em 2009 transformaram radicalmente o cenário da cidadania italiana pela linha materna. O que antes era uma exclusão formalizada pela lei de 1912 tornou-se um direito plenamente reconhecido, com efeitos retroativos.
Esse avanço, no entanto, não eliminou todas as controvérsias. A resistência administrativa e a criação de teses restritivas, como a da falsa materna, mostram que a batalha pela plena igualdade na transmissão da cidadania ainda não estava concluída. Essa será a matéria do próximo bloco, em que analisaremos a origem e o conteúdo desse mito, bem como seus impactos práticos nos processos de reconhecimento.
O mito da falsa materna
Origem do mito
A decisão da Corte di Cassazione de 2009 deveria ter encerrado qualquer dúvida a respeito da transmissão da cidadania pela linha materna. Contudo, em alguns ambientes administrativos e até mesmo judiciais surgiu uma tese restritiva conhecida como mito da falsa materna.
Esse mito parte de uma premissa equivocada: se a mulher italiana não perdeu a cidadania pelo casamento, porque se casou com um homem também italiano, então não haveria fundamento para invocar a tese da inconstitucionalidade do artigo 1 da Lei n. 555 de 1912. Segundo esse raciocínio, a cidadania poderia ser atribuída ao filho pelo pai, e não pela mãe, razão pela qual a via materna seria apenas uma “ficção”.
Na prática, o mito foi construído como um argumento de defesa por parte de alguns consulados e procuradorias do Estado italiano, com o objetivo de restringir o alcance da decisão de 2009. Ele também encontrou eco em alguns tribunais de primeira instância, especialmente em regiões mais conservadoras, criando uma nova barreira probatória para os descendentes.
Como o mito se apresenta
O mito da falsa materna normalmente aparece em duas versões principais:
1. A primeira versão sustenta que a transmissão da cidadania pela mãe só seria necessária nos casos em que ela tivesse perdido a cidadania por casamento com estrangeiro. Como nas hipóteses de casamento com italiano a cidadania não era perdida, a mulher não poderia ser considerada a dante causa.
2. A segunda versão exige a comprovação documental da cidadania do pai italiano, mesmo quando já se demonstrou de forma plena a cidadania da mãe. Se o nascimento do pai não é localizado, o processo seria indeferido sob a justificativa de que não é possível comprovar qual dos genitores efetivamente transmitiu a cidadania.
Em ambas as versões, o efeito é o mesmo: a mãe italiana é desqualificada como transmissora do status civitatis, perpetuando de forma indireta a discriminação que a jurisprudência já havia declarado inconstitucional.
Impacto nos processos administrativos
Nos consulados italianos, especialmente aqueles situados em países com grande número de descendentes, como Brasil e Argentina, o mito da falsa materna foi utilizado como argumento para indeferir pedidos de reconhecimento de cidadania.
Ao exigir o nascimento do pai italiano, mesmo quando a mãe italiana já estava plenamente documentada, os consulados criaram um requisito impossível de cumprir em muitos casos. É sabido que registros civis de determinadas regiões italianas foram perdidos por incêndios, guerras ou má conservação. A ausência de um registro de nascimento do pai passou a ser tratada como impeditivo absoluto, mesmo quando a linha da mãe estava comprovada.
Essa prática gerou insegurança jurídica e frustração em milhares de famílias, que já haviam investido tempo e recursos na busca documental.
Impacto nos processos judiciais
Também no âmbito judicial a tese da falsa materna foi invocada em defesas do Estado italiano e acolhida em algumas sentenças. Tribunais de primeira instância passaram a exigir a comprovação da italianidade do pai, negando o direito do descendente quando essa prova não estava disponível.
Em outras situações, os juízes reconheceram a italianidade da mãe, mas argumentaram que o filho poderia igualmente ter herdado a cidadania pelo pai. Como não havia prova documental da cidadania paterna, a decisão foi pela improcedência do pedido.
Essas sentenças criaram um ambiente de incerteza, em que a aplicação da decisão de 2009 da Cassazione passou a depender da interpretação local de cada tribunal. O resultado foi um mosaico de decisões divergentes, algumas favoráveis e outras contrárias, mesmo em casos com fundamentos idênticos.
A falácia central do mito
O mito da falsa materna se sustenta em uma falácia: confunde a perda da cidadania pela mulher com a capacidade de transmitir a cidadania aos filhos.
O ponto central da declaração de inconstitucionalidade não foi o regime de perda por casamento, mas sim a exclusão da mulher como transmissora iure sanguinis. Ainda que a mulher não tivesse perdido a cidadania ao casar-se com italiano, ela continuava impedida de transmitir aos filhos, porque a lei atribuía exclusivamente ao pai esse papel.
Em outras palavras, a discriminação existia mesmo nos casos em que a mulher nunca perdeu a cidadania. A questão é que sua capacidade de transmitir aos filhos era juridicamente negada. Logo, a inconstitucionalidade do artigo 1 da Lei de 1912 e do artigo 1 da Lei de 1992 alcança igualmente os casos em que o marido era italiano.
Efeitos perversos do mito
A aplicação do mito da falsa materna gera uma série de consequências injustas.
Primeiro, cria um requisito probatório impossível de cumprir em muitos casos. A exigência de localizar o nascimento do pai italiano, mesmo quando o da mãe já está documentado, transforma a cidadania em um direito condicionado ao acaso da conservação dos registros.
Segundo, perpetua a discriminação de gênero. Ao negar a mãe como transmissora, ainda que documentada, o mito mantém viva a lógica de exclusão feminina que a Constituição de 1948 e a jurisprudência de 2009 buscaram superar.
Terceiro, produz insegurança jurídica. Famílias em situações idênticas passam a receber decisões distintas conforme o tribunal ou consulado envolvido, violando o princípio da igualdade de tratamento.
Quarto, sobrecarrega o Poder Judiciário. A multiplicação de processos em razão dos indeferimentos administrativos gera custos desnecessários e prolonga o tempo de tramitação.
O mito e o princípio da igualdade
A Constituição italiana estabelece no artigo 3 que todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo. Aceitar o mito da falsa materna significa admitir que, ainda hoje, a mulher italiana não pode ser considerada transmissora da cidadania em igualdade de condições com o homem.
O artigo 29, por sua vez, consagra a paridade dos cônjuges dentro da família. Negar a capacidade da mulher de transmitir cidadania ao filho legítimo nascido de casamento com italiano é negar na prática a paridade consagrada constitucionalmente.
Portanto, a aceitação do mito representa uma violação direta e frontal da Constituição.
A perpetuação da discriminação
Ao reintroduzir por via interpretativa uma discriminação já declarada inconstitucional, o mito da falsa materna cria uma forma disfarçada de desigualdade. Ele tenta reconstruir barreiras jurídicas que já foram demolidas pelo controle de constitucionalidade.
Na prática, o mito atua como uma espécie de “ressurreição” da Lei n. 555 de 1912, ainda que parcialmente, em contradição com a própria Cassazione. Por isso, seu acolhimento não pode ser admitido sem que se comprometa a integridade do sistema jurídico.
Síntese
O mito da falsa materna nasceu como uma tentativa de limitar os efeitos da decisão de 2009 da Cassazione. Foi utilizado por consulados e tribunais para criar obstáculos documentais e indeferir pedidos legítimos de cidadania pela linha materna.
Essa tese, porém, se baseia em premissas equivocadas, perpetua a discriminação de gênero e viola frontalmente os princípios constitucionais de igualdade e de paridade. Seus efeitos são perversos, pois transformam um direito originário em um privilégio condicionado a provas impossíveis de serem obtidas.
No próximo bloco, examinaremos em detalhe as razões jurídicas pelas quais o mito da falsa materna não se justifica e deve ser rejeitado, tanto na prática administrativa quanto na jurisprudência judicial.
A crítica jurídica ao mito da falsa materna
O chamado mito da falsa materna não resiste a uma análise jurídica rigorosa. A seguir, apresento os principais fundamentos que demonstram a sua absoluta inconsistência.
Confusão entre perda de cidadania e transmissão de cidadania
O primeiro equívoco estrutural do mito é confundir a perda da cidadania pela mulher italiana com a sua capacidade de transmiti-la aos filhos.
A Lei n. 555 de 1912 previa duas restrições distintas: a perda da cidadania pela mulher que se casava com estrangeiro e a exclusão da mulher como transmissora iure sanguinis. São institutos jurídicos diferentes, que produzem efeitos autônomos.
A declaração de inconstitucionalidade feita pela Corte di Cassazione em 2009 não se limitou à regra da perda por casamento, que já havia sido afastada pela Corte Costituzionale em 1975. Ela alcançou também a regra da incapacidade de transmitir, que era a essência discriminatória do artigo 1º da Lei de 1912.
Portanto, mesmo que a mulher não tivesse perdido a cidadania em razão do casamento com italiano, continuava impedida de transmitir. Essa exclusão é que foi declarada inconstitucional. Logo, a tese da falsa materna é insustentável porque parte da premissa errada de que a discriminação só existiria nos casos de casamento com estrangeiro.
A eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade
Outro ponto fundamental é a eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade.
A Corte di Cassazione, na decisão de 2009, afirmou expressamente que a cidadania se transmite iure sanguinis desde o nascimento, se um dos genitores é italiano. A lei ordinária que excluiu a mãe foi declarada incompatível com a Constituição e, portanto, inválida desde a sua origem.
Isso significa que não há necessidade de “reparação” apenas para casos de perda de cidadania. O efeito é muito mais amplo: a mulher sempre foi transmissora originária. A lei que negava esse direito é considerada inexistente no ordenamento jurídico após a declaração de inconstitucionalidade.
Esse raciocínio elimina qualquer tentativa de relativização. Não importa se a mulher se casou com italiano ou com estrangeiro. O núcleo da questão é que, desde sempre, ela deveria ter sido reconhecida como transmissora da cidadania.
Violação do princípio da igualdade
Aceitar o mito da falsa materna implica violar diretamente o artigo 3 da Constituição italiana, que estabelece a igualdade entre homens e mulheres.
Se um filho de pai italiano é sempre reconhecido como cidadão iure sanguinis, independentemente da nacionalidade da mãe, o mesmo deve ocorrer em relação ao filho de mãe italiana. Qualquer distinção fundada apenas no sexo do genitor é discriminatória e, portanto, inconstitucional.
Além disso, o artigo 29 da Constituição garante a igualdade jurídica entre os cônjuges dentro da família. Negar a transmissão pela mãe casada com italiano equivale a atribuir ao pai uma primazia inexistente no texto constitucional. É uma forma velada de perpetuar a desigualdade já superada.
O status civitatis como direito originário
Outro fundamento essencial para a crítica ao mito da falsa materna é a natureza do status civitatis.
A cidadania italiana é um status originário, que nasce no momento do nascimento do indivíduo. Não é um direito adquirido posteriormente, nem um benefício concedido pelo Estado. Se o filho nasce de genitor italiano, ele é cidadão desde a origem.
O reconhecimento posterior, seja administrativo ou judicial, tem caráter meramente declaratório. Ele não cria a cidadania, apenas a reconhece.
Portanto, negar a cidadania com base na ausência do registro do pai, quando a mãe italiana está plenamente documentada, significa transformar um direito originário em um privilégio condicionado. Essa lógica é incompatível com a própria natureza da cidadania.
A inconsistência probatória do mito
Do ponto de vista probatório, o mito da falsa materna cria um non sense jurídico.
Exigir a prova do nascimento do pai italiano, mesmo quando já está comprovada a italianidade da mãe, é exigir mais do que o necessário. O direito já está fundamentado no vínculo materno. O pai pode até reforçar a linha, mas não é condição de validade.
Esse excesso probatório coloca os descendentes em uma posição impossível, especialmente porque muitos registros italianos foram destruídos ou extraviados. É inaceitável que um direito fundamental seja negado por circunstâncias alheias à vontade da parte, como a perda de arquivos em guerras ou catástrofes.
O princípio da não discriminação indireta
Além da violação direta ao princípio da igualdade, o mito da falsa materna configura uma forma de discriminação indireta.
Mesmo sem declarar abertamente que a mulher não transmite, a exigência de documento do pai cria um obstáculo que só se aplica às linhas maternas. Na prática, o efeito é manter a exclusão feminina sob outra roupagem.
Esse tipo de discriminação indireta já foi amplamente reconhecido pela jurisprudência constitucional italiana e também pelo direito internacional, especialmente na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), ratificada pela Itália.
A função uniformizadora da Cassazione
A decisão da Cassazione a Sezioni Unite de 2009 tem função uniformizadora. Seu objetivo foi pôr fim às divergências interpretativas e consolidar a aplicação do princípio da igualdade na cidadania.
Ignorar esse precedente ou relativizá-lo com teses como a falsa materna significa violar a própria função institucional da Cassazione. Tribunais inferiores e consulados não podem se afastar de um precedente consolidado sem ferir a segurança jurídica.
O caráter imprescritível e irrevogável da cidadania
Por fim, é importante destacar que a cidadania italiana é imprescritível e irrevogável. Uma vez que nasce no momento do nascimento do indivíduo, não pode ser retirada nem condicionada a requisitos posteriores.
O mito da falsa materna, ao condicionar a cidadania à prova documental do pai, subverte essa característica essencial. Ele transforma um direito absoluto em uma hipótese condicional, o que é incompatível com a dogmática da cidadania italiana.
Síntese
A crítica jurídica ao mito da falsa materna revela sua completa falta de fundamento. A confusão entre perda e transmissão, a desconsideração da eficácia retroativa da inconstitucionalidade, a violação dos princípios constitucionais de igualdade e paridade, o desrespeito à natureza do status civitatis e a criação de obstáculos probatórios inaceitáveis demonstram que se trata de uma tese insustentável.
Do ponto de vista constitucional, jurisprudencial e dogmático, o mito não se sustenta. Sua aplicação equivale a perpetuar uma discriminação já declarada inconstitucional e a negar um direito originário de cidadania.
No próximo bloco, apresentaremos a vitória judicial que consolidou a rejeição desse mito e reafirmou o direito pleno dos descendentes de mulheres italianas ao reconhecimento da cidadania iure sanguinis.
Nossa vitória judicial contra o mito da falsa materna
O contexto do processo
Após anos de debates teóricos, a tese da falsa materna vinha sendo utilizada por algumas procuradorias do Estado e até mesmo acolhida em determinadas sentenças de tribunais italianos. Nosso escritório se deparou exatamente com essa situação em um processo recente.
A linha genealógica de nossos clientes estava plenamente comprovada pela mãe italiana, nascida em Comune do Norte da Itália no final do século XIX. A documentação era completa, autêntica e devidamente apostilada. O problema surgiu porque o pai, também italiano, não teve o seu nascimento localizado. O Estado, então, sustentou que não se poderia reconhecer a cidadania pela linha materna, já que a mãe não havia perdido a sua própria cidadania ao casar-se com italiano. Na visão da defesa, o dante causa legítimo só poderia ser o pai, e sua ausência documental inviabilizaria o pedido.
Essa é a essência do mito da falsa materna: um obstáculo artificial criado para reintroduzir a desigualdade entre homens e mulheres sob uma roupagem probatória.
A nossa estratégia jurídica
Desde o início, estruturamos a defesa em três eixos principais.
Primeiro, demonstramos que a confusão entre perda e transmissão de cidadania era insustentável. A exclusão da mãe como transmissora existiu independentemente do casamento, e foi declarada inconstitucional pela Cassazione em 2009. O fato de a mãe ter casado com italiano não elimina a discriminação, porque a lei de 1912 simplesmente não reconhecia a mulher como transmissora em nenhum caso.
Segundo, invocamos a eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade. A cidadania não nasce em 2009 nem em 1948, mas no momento do nascimento. Os filhos da mãe italiana sempre foram cidadãos iure sanguinis, ainda que o Estado tenha se recusado, e ainda se recusa, a reconhecer esse direito por décadas.
Terceiro, argumentamos que exigir o registro de nascimento do pai italiano, quando a mãe italiana está plenamente comprovada, é exigir mais do que a Constituição e a jurisprudência demandam. É impor uma prova impossível em muitos casos, transformando a cidadania em um privilégio condicionado, o que viola a natureza originária e imprescritível do status civitatis.
Os fundamentos acolhidos pelo tribunal
O tribunal acolheu integralmente a nossa tese. Na fundamentação da sentença, foram destacadas as seguintes premissas:
1. A cidadania italiana é transmitida iure sanguinis tanto pelo pai quanto pela mãe.
2. A exclusão da mãe como transmissora, prevista no artigo 1 da Lei n. 555 de 1912 e no artigo 1 da Lei n. 91 de 1992, foi declarada inconstitucional, com eficácia retroativa.
3. A transmissão da cidadania não depende da nacionalidade do outro genitor. Se a mãe é italiana, a linha materna é suficiente por si só.
4. A ausência de registro de nascimento do pai italiano não pode anular um direito originário fundado na italianidade da mãe.
5. Exigir essa documentação configura discriminação indireta de gênero e viola os artigos 3 e 29 da Constituição italiana.
Com base nesses fundamentos, a sentença reconheceu o direito de nossos clientes à cidadania italiana iure sanguinis pela linha materna, afastando expressamente o mito da falsa materna.
O impacto da decisão
Essa vitória vai além do caso concreto. Ela consolida um precedente importante contra uma tese que ainda hoje gera insegurança jurídica em milhares de descendentes. Ao rejeitar a falsa materna, o tribunal reafirmou que a cidadania italiana é um status originário, imprescritível e irrevogável, e que não pode ser condicionada a obstáculos probatórios artificiais.
Do ponto de vista prático, a decisão abre caminho para que outras famílias em situação semelhante ingressem em juízo com maior segurança. O precedente fortalece a jurisprudência e contribui para uniformizar o entendimento nos tribunais.
Do ponto de vista institucional, demonstra que a advocacia especializada tem papel decisivo na consolidação dos direitos de cidadania. Não basta conhecer a lei; é preciso dominar a jurisprudência, compreender a lógica constitucional e desmontar teses restritivas que ainda circulam nos tribunais.
A superação definitiva do mito
Com essa decisão, podemos afirmar que o mito da falsa materna está cada vez mais próximo da superação definitiva. Os fundamentos jurídicos contrários a essa tese são robustos e consistentes, e agora encontram respaldo em sentenças recentes.
É provável que ainda existam decisões isoladas em sentido contrário, mas a tendência é que a jurisprudência se consolide progressivamente. A própria função uniformizadora da Cassazione impõe a rejeição dessa tese, já que ela viola frontalmente a decisão de 2009 das Sezioni Unite.
Além disso, a pressão social e institucional é crescente. Em um contexto em que a igualdade de gênero é cada vez mais valorizada, não há espaço para interpretações que perpetuem discriminações históricas.
Conclusão
O mito da falsa materna nasceu como uma tentativa de restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1 da Lei n. 555 de 1912 e do artigo 1 da Lei n. 91 de 1992. Sua lógica, no entanto, sempre foi falha: confunde perda com transmissão de cidadania, ignora a eficácia retroativa da inconstitucionalidade, viola o princípio da igualdade, subverte a natureza originária do status civitatis e cria exigências probatórias incompatíveis com o direito fundamental à cidadania.
A vitória obtida em juízo demonstra que essa tese não tem mais espaço no ordenamento jurídico italiano. Reafirma-se que a cidadania italiana é transmitida tanto pelo pai quanto pela mãe, em igualdade de condições, e que qualquer tentativa de limitar esse direito constitui discriminação de gênero inaceitável.
Mais do que um resultado processual, trata-se de um marco na defesa dos direitos dos descendentes de italianos, que não podem ser privados de seu status civitatis por mitos jurídicos ou obstáculos documentais artificiais.
A superação da falsa materna representa não apenas a vitória de uma tese jurídica, mas também a afirmação de um princípio constitucional essencial: a igualdade entre homens e mulheres, em todos os aspectos da vida social e familiar.