O Princípio do Jus Sanguinis e a Dialética do Pertencimento

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O Princípio do Jus Sanguinis e a Dialética do Pertencimento

O Princípio do Jus Sanguinis e a Dialética do Pertencimento

Entre o Sangue e o Solo

A nacionalidade é o primeiro elo jurídico entre o indivíduo e o Estado. Ela define pertencimento político, integra a pessoa à ordem soberana e determina sob qual jurisdição se projetam seus direitos e deveres. Dentro dessa estrutura, dois princípios clássicos delineiam as formas de aquisição da cidadania: o jus sanguinis e o jus soli.

Mais do que categorias técnicas, eles refletem visões de mundo distintas — uma baseada na continuidade familiar e histórica, outra na integração territorial e política. Compreender essa dualidade é fundamental para entender o modelo italiano de cidadania e, principalmente, o porquê de ele resistir às reformas e permanecer fiel ao sangue como critério jurídico de pertença.


1. Fundamentos conceituais

O jus sanguinis (direito de sangue) atribui a cidadania com base na filiação: o filho de pai ou mãe cidadãos nasce cidadão, independentemente do local do nascimento. O jus soli (direito de solo) atribui cidadania em razão do local de nascimento: quem nasce no território do Estado é seu cidadão, ainda que os pais sejam estrangeiros.

Ambos coexistem desde o século XIX, quando o conceito de nacionalidade tornou-se central para a consolidação dos Estados modernos. Na Europa continental, o jus sanguinis surgiu como instrumento de coesão nacional, reforçando a continuidade entre gerações dispersas. Nas Américas, o jus soli serviu como mecanismo de integração social e de absorção dos fluxos migratórios.

Do ponto de vista jurídico, ambos são critérios de atribuição originária de cidadania, mas partem de fundamentos distintos: o jus sanguinis é declaratório e hereditário; o jus soli, constitutivo e territorial.


2. O jus sanguinis na tradição italiana

A Itália adotou o jus sanguinis como eixo estrutural da sua legislação desde a Lei nº 555/1912, que fixou o vínculo de sangue como fundamento da cidadania italiana. Essa tradição foi reafirmada pela Lei nº 91/1992, cujo artigo 1º dispõe:

"È cittadino per nascita il figlio di padre o di madre cittadini."

A norma tem natureza declaratória, não constitutiva. A cidadania italiana não é concedida pelo Estado — ela preexiste ao reconhecimento formal. O Estado apenas a declara e certifica, com base em prova documental que demonstre a linha de transmissão ininterrupta.

Essa concepção faz da cidadania italiana um status originário, e não derivado. O reconhecimento judicial (riconoscimento della cittadinanza iure sanguinis) é, em essência, um ato de verificação de fato jurídico anterior, que retroage ao nascimento do indivíduo (ex tunc).


3. Estrutura dogmática e natureza declarativa

No plano teórico, o jus sanguinis projeta uma cidadania de natureza hereditária, imprescritível e transmissível indefinidamente, salvo prova de ruptura na cadeia sucessória (como naturalização voluntária do ascendente antes do nascimento do descendente).

A doutrina italiana — de Mortati a Crisafulli — é unânime ao classificar a cidadania iure sanguinis como status público fundamental, integrante da personalidade jurídica do indivíduo. Ela não depende de vontade, residência ou integração cultural: decorre automaticamente do nascimento, como expressão do princípio da continuidade familiar e da unidade do povo italiano.

Em termos técnicos, trata-se de um status civitatis originario, cujo reconhecimento tem efeito declaratório e retroativo, restaurando a eficácia plena de um direito que jamais se extinguiu. A jurisprudência da Corte di Cassazione é pacífica: o reconhecimento iure sanguinis "non attribuisce, ma accerta" — não cria, apenas constata.


4. O jus soli e o paradigma territorial

O jus soli, por sua vez, funda-se em uma lógica de integração territorial e política. O nascimento em território estatal presume o início de um vínculo jurídico e político direto com o Estado, independentemente da origem familiar.

É o modelo consagrado, por exemplo, na 14ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que dispõe: "All persons born or naturalized in the United States […] are citizens of the United States and of the State wherein they reside."

O fundamento é republicano: a pertença nasce da convivência sob a mesma jurisdição, e não do sangue. O Estado define seus cidadãos pelo território e pela sujeição ao seu poder soberano.

Do ponto de vista político, o jus soli busca unificar sociedades multiculturais, garantindo cidadania imediata aos nascidos no país. É um instrumento de integração e de prevenção à apatridia. Mas também carrega riscos: pode gerar vínculos jurídicos sem lastro histórico ou cultural, reduzindo a cidadania a um fato geográfico — uma adesão territorial desprovida de memória.


5. A lógica identitária do modelo italiano

A Itália é o oposto desse paradigma. Seu sistema jurídico considera a cidadania como expressão da história coletiva, não como contrato político de ocasião. O jus sanguinis traduz a noção de que o povo italiano existe para além do território — ele se perpetua através do sangue, da cultura e da memória transmitida entre gerações.

Por isso, a cidadania italiana é ilimitadamente transmissível: não há limitação geracional expressa. Enquanto o Estado puder verificar documentalmente a continuidade da linha familiar, o vínculo jurídico persiste. A cidadania é vista como patrimônio da família, não como privilégio do indivíduo.

Essa concepção tem um significado político profundo: o Estado reconhece como parte da comunidade nacional todos os descendentes de italianos espalhados pelo mundo, preservando a unidade moral e histórica da nação.


6. Comparativo jurídico e filosófico

Critério Jus Sanguinis Jus Soli
Fundamento Vínculo familiar e histórico Vínculo territorial e político
Natureza Declaratória (reconhece direito pré-existente) Constitutiva (cria direito novo)
Efeito jurídico Retroativo (ex tunc) Prospectivo (ex nunc)
Função Continuidade da nação Integração social
Risco correlato Apatridia Cidadania desvinculada de identidade
Modelo de Estado Identitário, histórico, comunitário Republicano, integrador, territorial

Ambos os modelos são legítimos. O jus soli cumpre papel social inclusivo; o jus sanguinis cumpre função histórica e identitária. A tensão entre ambos é a tensão entre origem e destino, herança e escolha, memória e convivência.


7. A teoria da nacionalidade como status público

No direito italiano, a cidadania é qualificada como status público permanente. Ela não é uma faculdade, mas uma condição jurídica básica que confere à pessoa um conjunto de direitos e deveres frente ao Estado. A perda ou a não-reconhecida cidadania implica a negação de uma condição política essencial.

Por isso, o reconhecimento judicial da cidadania iure sanguinis possui efeito retroativo: ele reestabelece a verdade jurídica preexistente, corrigindo omissões registrárias. A sentença tem natureza declaratória constitutiva de efeitos retroativos, conforme reconhecido reiteradamente pela Corte di Cassazione (entre outras, Cass. Civ. n. 4466/2009 e Cass. Civ. n. 1328/2017).

Esses precedentes sustentam a tese de que a cidadania italiana é inata, e o processo judicial tem a função de restaurar o vínculo formal, não de criá-lo.


8. Direito comparado europeu

O panorama europeu demonstra que o jus sanguinis italiano é uma exceção robusta.

- França: adota um modelo misto, combinando jus soli condicionado à residência e jus sanguinis limitado a uma geração.

- Alemanha: aplica o jus sanguinis, mas impõe restrição geracional e requisitos de registro.

- Espanha: segue o princípio do sangue, mas com limite até netos e prazos de exercício.

- Portugal: reformou sua lei em 2015 e 2020, aproximando-se do modelo italiano ao permitir a transmissão da nacionalidade a netos, desde que demonstrem ligação efetiva com a comunidade portuguesa.

A Itália, ao manter o jus sanguinis ilimitado, conserva uma das legislações mais abrangentes do mundo em matéria de transmissão de cidadania. Isso reflete um posicionamento político claro: a Nação italiana é uma comunidade histórica, não restrita ao território da República.


9. O papel residual do jus soli no ordenamento italiano

Ainda que o jus sanguinis seja a regra, o jus soli aparece na legislação italiana como exceção protetiva. São considerados cidadãos italianos por nascimento:

1. Os nascidos em território italiano de pais apátridas ou desconhecidos;

2. Os nascidos na Itália que não possuam outra cidadania;

3. Os filhos de estrangeiros nascidos e residentes ininterruptamente na Itália até completarem 18 anos, mediante declaração formal.

O jus soli, portanto, atua como cláusula de salvaguarda contra a apatridia, e não como instrumento de identidade nacional. Ele tem função corretiva, não constitutiva do modelo italiano de cidadania.


10. A cidadania como elo constitucional

A Constituição Italiana de 1948 consagra o princípio da igualdade entre homens e mulheres na transmissão da cidadania (art. 3 e art. 29) e reafirma que "a soberania pertence ao povo" (art. 1). O povo, no caso italiano, não se define apenas pela residência ou pelo território, mas pela continuidade do sangue e da história comum.

Esse fundamento explica por que a Corte Costituzionale, na Sentenza n. 142/2025, reafirmou a constitucionalidade do modelo de jus sanguinis, reconhecendo-o como expressão legítima da identidade republicana. A Corte destacou que o vínculo de cidadania é "uma expressão jurídica da unidade da nação italiana, fundada na continuidade entre gerações".

Essa leitura constitucional desmonta interpretações restritivas que tentam transformar o reconhecimento iure sanguinis em concessão graciosa. O reconhecimento não é favor do Estado: é o cumprimento de um dever jurídico perante o cidadão de origem italiana.


11. O impacto prático nos processos de cidadania

No campo prático, o jus sanguinis define toda a estrutura procedimental dos processos de cidadania italiana. O requerente não "pede" a cidadania — ele demonstra que a possui desde o nascimento. O papel do advogado ou assessor é provar a continuidade da linha familiar e a ausência de causas de perda, por meio de documentos autênticos, traduzidos e apostilados.

A distinção entre "pedido" e "reconhecimento" é juridicamente decisiva. No jus sanguinis, o processo tem natureza declaratória (art. 281-decies c.p.c.). No jus soli, seria constitutivo — o Estado criaria um novo vínculo.

Por isso, a atuação profissional exige precisão técnica e domínio do conceito: o advogado não busca uma "concessão de nacionalidade", mas uma declaração judicial de status preexistente, que retroage à data do nascimento e projeta efeitos plenos na ordem jurídica italiana.


12. Perspectiva histórica e sociopolítica

A opção italiana pelo jus sanguinis está intimamente ligada à história da emigração. Entre o final do século XIX e meados do XX, mais de 25 milhões de italianos deixaram a península em busca de melhores condições de vida. Ao manter o vínculo jurídico com seus descendentes, a Itália garantiu que essa diáspora continuasse a integrar a nação — mesmo distante.

Esse modelo jurídico tornou-se também um instrumento de diplomacia cultural e econômica. Os descendentes reconhecidos cidadãos constituem uma rede global de italianidade, que fortalece a presença internacional do país e gera impacto econômico direto, por meio do turismo, dos investimentos e da revalorização das comunidades italo-descendentes.


13. Entre a origem e o território: síntese doutrinária

O jus sanguinis e o jus soli não são apenas técnicas de atribuição. São manifestações de duas concepções de Estado:

- O Estado-comunidade, que se reconhece no sangue e na tradição, próprio do jus sanguinis;

- O Estado-contrato, que se funda na convivência e na adesão ao território, próprio do jus soli.

A cidadania italiana repousa no primeiro modelo. Ela entende a nacionalidade como continuidade espiritual e jurídica, e não como simples registro civil. É por isso que a Itália resiste a reformas que buscam limitar o jus sanguinis: fazê-lo seria romper com o próprio fundamento constitucional da República.


14. Conclusão: a cidadania como herança jurídica e política

O jus sanguinis não é um privilégio, mas uma forma de justiça histórica. Ele reconhece que o pertencimento à comunidade italiana nasce no momento do nascimento, pela filiação, e não por ato de vontade estatal. A cidadania iure sanguinis é um direito adquirido por nascimento e preservado pelo tempo, transmissível indefinidamente enquanto não houver renúncia expressa.

Em contrapartida, o jus soli reflete a visão de cidadania como integração e escolha, própria de sociedades fundadas na imigração. Ambos são legítimos. Mas o modelo italiano é coerente com sua história e com a estrutura republicana que valoriza o povo como sujeito de soberania.

O reconhecimento da cidadania italiana, portanto, não cria um direito novo — restaura um direito antigo. É a prova viva de que o Estado italiano reconhece seus filhos, mesmo à distância, como parte da mesma comunidade histórica que atravessa fronteiras e séculos.

O jus sanguinis é, assim, mais do que um princípio jurídico: é um pacto de continuidade entre gerações. Uma herança que não se perde no tempo, que sobrevive à geografia e reafirma a essência do que significa ser italiano — não por onde se nasce, mas por quem se é.



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